APONTAMENTOS PARA FALA NO
SEMINÁRIO NACIONAL DE EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE[1]
Luciano
Bezerra Gomes[2]
Tema: Educação em Saúde: avaliação
crítica no atual cenário político
Data: 11 de dezembro de 2014
Local: João Pessoa-PB
Tentarei, nessa breve apresentação,
falar de alguns aspectos que considero importantes para serem encarados por
aqueles que, como eu, tentam operar processos de educação em saúde em distintas
perspectivas.
Por um lado, creio que devemos pensar
nos processos relacionados à educação em saúde dentro da perspectiva que
considera como válidos os saberes das várias pessoas envolvidas nas relações de
cuidado que se desenvolvem no campo da saúde.
Esta dimensão nos coloca a necessidade
de promovermos uma troca entre o saber popular e o científico, em que ambos têm
a enriquecer reciprocamente. Isso permite que as equipes de saúde ampliem suas
práticas, dialogando com o saber da população. Sendo assim, a postura do
profissional de saúde para com a medicina popular deve ser de respeito e
diálogo.
Para tanto, as ações educativas
precisariam ser reorientadas para que, ao invés do repasse de normas e
orientações de higiene e boas condutas, tais iniciativas se apresentassem como
oportunidades de diálogo entre trabalhadores e usuários, onde os aspectos
coletivos da dinâmica comunitária pudessem ser enfatizados.
Ainda, precisariam desenvolver processos
de formação capazes de ir além da apropriação de certos conhecimentos
científicos e saberes: pensando numa prática pedagógica que permita a vivência
intensa de certas experiências transformadores das pessoas mesmas.
Devemos, assim, buscar uma educação em
saúde que supere a lógica instrumental. Por exemplo, rompendo com a mera busca
de “diminuir a resistência e ampliar a adesão terapêutica”, mas, ao invés
disso, considerando as disputas de planos de cuidados constitutivas ao trabalho
em saúde e, assim, as aproveitando como elemento rico na problematização da
produção da existência dos usuários e da
atuação dos trabalhadores da saúde.
Outro desafio posto nesse deslocamento
se refere ao manejo de meios de comunicação de maior abrangência, como rádio e
as redes sociais baseadas na internet
Além disso, para além do conhecimento
sistematizado, devemos trabalhar na perspectiva das ações entredisciplinares.
Enfim, este primeiro conjunto de
questões referentes à educação em saúde aponta, de certa forma, para aspectos
“internos” ao debate da educação. Mas há um outro conjunto de elementos, que
dialoga muito próximo com este, mas que poderia considerá-los como fazendo
parte de outro campo de questões.
Neste sentido, coloco, por exemplo, a
reflexão sobre o quanto os processos educativos devem se deparar com o tema da
medicalização. Por um lado, considerando o quanto medicalizadas já se encontram
muitas das lógicas que consideramos como sendo inerentes aos saberes populares sobre
o processo saúde-doença. Por outro, permitindo abranger elementos que apontam
não apenas para a intervenção sobre os processos de adoecimento, mas também para
a expansão do campo da saúde sobre a dimensão da produção da vida, com a
normalização dos modos de existência.
É nesse sentido, também, que agrego
outro conjunto de reflexões que aponta para o quanto o debate sobre a educação
em saúde deve transpor em muito os aspectos “pedagógicos” clássicos, vistos como uma
questão de métodos de ensino, partindo para a constatação de que a educação em
saúde se refere muito mais à maneira como as pessoas e coletivos produzem sua
existência. Neste sentido, educar para a saúde é um processo que permite ajudar
a população a compreender as causas de suas doenças e a se organizar para
superá-las. Entretanto, é mais que isso, por ser também aquilo que deveria
permitir a luta para que certas dimensões da vida não entrem no rol de
dimensões do campo disciplinar da saúde. Isto se materializa, por exemplo, na
luta dos coletivos LGBT para que não precisem ser declarados portadores de
disforia de gênero para terem acesso a cirurgias de mudanças de sexo, ou para que
as mulheres possam assumir que o parto é um ato da vida, não um procedimento de
saúde.
Tal processo, então, remete a uma educação
em saúde que faz uma aposta pedagógica na ampliação progressiva da análise
crítica da realidade por parte dos coletivos à medida que eles sejam produtores
de sua própria história. E neste sentido, os serviços de saúde podem ser atores
importantes, caso saibam dinamizar a capacidade potencial que têm de constituir
redes de articulação poderosas em suas capilaridades.
Além disso, é importante colocar a
necessidade de que os processos de educação em saúde se pautem pelos interesses
das classes populares, cada vez mais heterogêneas, considerando os movimentos
sociais locais como seus interlocutores preferenciais, mas não como únicos
mediadores de suas ações. A radicalização da democracia nas políticas públicas exige
dialogar com estratégias atuais de produção de luta e participação, que não
passam apenas pelas estruturar formais dos partidos e movimentos sociais.
Ainda, um último desafio que gostaria
de colocar em relação a essa dimensão “não-pedagógica” da educação em saúde se
refere à maneira como ela pode ser afetada por outras lógicas de produção de
conhecimento, como a arte e a filosofia. Se faz necessário pensarmos, por
exemplo, em como trabalhar a arte na formação não como um adereço, não na lógica
instrumental, e sim como algo que produz interferências em nós e, assim, nos
desloca e nos constitui como outras pessoas.
__________________________
[1] Essas anotações foram elaboradas
anteriormente ao debate, apenas para organizar as ideias para a exposição. Não
representam uma elaboração mais sistematizada sobre o tema, nem constam as
referências adequadas a conceitos elaborados por diversos autores. A pedido dos
organizadores do seminário, está sendo disponibilizada para acesso a quem tiver
interesse de conhecer um pouco do debate ocorrido no evento.
[2] Médico sanitarista, professor do
Departamento de Promoção da Saúde do Centro de Ciências Médicas da Universidade
Federal da Paraíba, pesquisador da Linha de pesquisa “Micropolítica do Trabalho
e o Cuidado em Saúde”, da UFRJ.
CÍRCULO DE CULTURA: DESAFIOS, POSSIBILIDADES E DIFICULDADES DA EDUCAÇÃO POPULAR NA FORMAÇÃO TÉCNICA EM SAÚDE ANA LUCIA JEZUINO DA COSTA
Ana Lucia Jezuino da Costa[1]
13/12/2014
Depois
que aceitei o convite na função de problematizadora, fiquei apreensiva em relação
à dinâmica e ao que iria falar sobre educação popular sendo uma enfermeira
aposentada. Durante as caminhadas pela manhã na praia consegui perceber que o
motivo de estar neste espaço de reflexão tinha origem em duas experiências que vivenciei:
na Escola de Formação Técnica Enfermeira Izabel dos Santos (ETIS-RJ) e no Senac
Departamento Nacional. Então resolvi mixar estas duas experiências.
A
ETIS compõe a Rede de Escolas do SUS criada para formar profissionais de nível
técnico para área de saúde, preferencialmente trabalhadores do Sistema Único de
Saúde, ou em processo de admissão. São instancias estratégicas no ordenamento de
recursos humano nas diferentes esferas de governo de acordo com o artigo 27 da
Lei Orgânica de Saúde 8080, que prevê a organização de um sistema de formação
de recursos humanos em todos os níveis de ensino, o que inclui a Educação
Profissional Técnica. Neste espaço, o foco da formação são as necessidades de
qualificação do sistema tendo como base a realidade de saúde locorregional e a
intensa participação do controle social na gestão dos processos formativos. Assim,
é ideal que a Rede de Escolas Técnicas esteja vinculada às Secretarias
Estaduais ou Municipais de Saúde e que mantenham intenso diálogo com os
Conselhos de Saúde.
No caso da ETIS-RJ, inicialmente estava ligada à
Secretaria Estadual de Saúde, descentralizando os cursos pelos Munícipios através
dos Núcleos de Ensino criados em parceria com as Secretarias Municipal de Saúde,
contando com a participação da Secretaria Municipal de Educação, representação
do controle social e dos profissionais de saúde.
Essas parcerias exigiam um longo processo de diálogo
e convencimento, pois os gestores não compreendiam seu papel no processo de
formação dos profissionais de nível médio, em razão de um olhar hierarquizado centrado
no desenvolvimento de algumas carreiras de nível superior. Então, mudar a visão
de mundo dos gestores em relação à visão estratégica destas escolas para o SUS,
sempre foi uma tarefa difícil.
A formação dos trabalhadores de nível médio,
no campo da saúde, geralmente é entendida como um empecilho para os gestores, por
serem numerosos e por exigir a criação de cargos e de novas categorias
profissionais, o que automaticamente requer investimentos financeiros e
tecnológicos. Portanto, a formação realizada de forma descentralizada envolve
avaliação dos nós críticos da rede, com vistas às ocupações necessárias ao
funcionamento integral do sistema, que nem sempre é do profissional médico ou
do enfermeiro, mas de um shiatisuterapeuta ou de um massoterapeuta, enfim de
outros profissionais que dominam técnicas de promoção de bem estar.
Resistentes,
os gestores argumentam que a formação profissional técnica exige mudanças nos
Planos de Cargos e Carreiras e aumento salarial, que consequentemente, levam ao
descumprimento da Lei de responsabilidade fiscal, não inibindo entretanto, a criação
de secretarias, ministérios, aumento de gratificações e outras benesses de
fatiamento de poder tão conhecidas no meio político. Infelizmente, a esquerda
brasileira, em 12 anos no poder, não conseguiu reverter tal prática, muito pelo
contrário, em algumas áreas do governo o uso dos recursos públicos segue o
clientelismo político anteriormente criticado.
A
forma de trabalho da ETIS-RJ incomodava porque seu projeto político pedagógico
(PPP) era centrado em algumas dimensões inegociáveis: no resgate/conquista dos
direitos de cidadania, nos princípios do SUS, na metodologia da
problematização, no diálogo com o controle social e no modo de viver das
pessoas e grupos sociais. A materialização das referidas dimensões contou com a
construção de currículos integrados que romperam com a segmentação dos saberes
ao delimitar grandes áreas de conhecimento organizadas em sequencias de
atividades seguindo a estrutura do arco de Charles Maguerez, a qual dialogava
com conceitos/reflexões chaves e com as habilidades a serem apropriadas pelo
sujeito da aprendizagem.
Seguindo
a lógica da descentralização, o corpo docente era formado por trabalhadores
vinculados às secretarias de saúde, liberados parcialmente ou totalmente para
as atividades docentes. Quando o projeto de formação era financiado, os
profissionais recebiam uma bolsa pelo trabalho, sem desvincular-se dos serviços
e de sua realidade, porque estrategicamente esta dupla função proporcionava mudanças
profundas nas relações de trabalho do SUS, pela troca de diferentes percepções
sobre o cuidado dentro do sistema de saúde. Na minha opinião, a primeira opção
era melhor pois institucionalizava o processo e consolidava a parceria, mas os
baixos salários, associado ao desconhecimento das atribuições dos profissionais
de nível superior no sistema, o que inclui a preceptoria/tutoria, resultava na
recusa de muitos trabalhadores a assumirem a tutoria sem a contrapartida
financeira.
Na
realidade, o vínculo com o Ministério da Saúde que atualmente gerencia a
RetSUS, não protege estas escolas das interferências impostas pela alternância
de poder nos governos Federal, Estadual e Municipais a cada 4 ou 2 anos. Na
ETIS-RJ, foram várias propostas de mudança de Secretaria (Educação ou Ciências
e Tecnologia), de local e de direção, o que exigia a mobilização dos
trabalhadores em prol da permanência da Escola no SUS. Resistiu-se quanto foi
possível, até que em 2010, por uma disputa de poder entre partidos de “esquerda”,
a direção foi trocada, o espaço da escola cedido para uma instalação de uma
Escola de Gastronomia Francesa (privatização do espaço público). Todo o
processo de descentralização e de articulação da Educação Profissional Técnica
com os serviços de saúde foram extintos com o ato de passagem desta Escola para
a Secretaria de Ciências e Tecnologia (FAETEC). Atualmente, a ETIS está sem identidade,
sem autonomia e sem reconhecimento do seu corpo diretivo.
Mas o que esta história tem a ver com a Educação
Popular? Se a educação popular é permeada por processos participativos, por
metodologias ativas e pela busca de transformação da realidade através de
processos que garantam a liberdade de pensamento, o respeito as diferenças por
meio de processos educativos que dialoguem com a cultura e com os viventes,
entendo que as RETSUS vivenciam esta proposta em sua estrutura curricular. A
Educação Popular é um tema que atravessa os currículos e sua gestão pela intensa
interação entre a teoria e a pratica, entre ensino e serviço de saúde e outros
setores correlatos. Neste contexto, as RETSUS representam um espaço importante
na multiplicação dos coletivos da Educação Popular.
Então, para que o processo de Educação Popular
continue vivo nestas esferas de educação profissional, são inegociáveis os
princípios do SUS, a descentralização com base na Municipalização dos
processos; os níveis de responsabilidade das esferas Federal, Estadual e
Municipal; e as concepções pedagógicas que propiciam a liberdade de pensamento
e de construção coletiva dos saberes, em que o aluno é o sujeito da
aprendizagem. Assim um dos grandes
desafios para aqueles que ainda acreditam no SUS é lutar pela manutenção destas
Escolas dentro das Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, com apoio de
políticas EPT pactuadas pelo Ministério da Saúde/ MEC nos diferentes cenários
federativos.
Admito que a desconstrução do projeto
político pedagógico da ETIS contribuiu para adiantar o processo de minha aposentadoria.
Foi neste momento de desilusão que trabalhei no Sistema S. Inicialmente coordenei
a área de Saúde e, posteriormente, com a nova estrutura da Educação
Profissional em Eixos Tecnológicos, passei a responder pelo Eixo Ambiente,
Saúde e Segurança, atualmente desmembrado em ET Ambiente e Saúde e ET Segurança,
esse último, mistura a segurança do trabalho com segurança civil de espaços
públicos.
Apesar
das críticas e da falta de consistência de alguns ET, o Ministério de Educação
precisava organizar o ensino técnico no Brasil pela existência da diversidade
de títulos para uma mesma ocupação ou profissão, sem contar a disparidade das
cargas horárias e a criação de novas ocupações sem nicho no mundo do trabalho.
Na verdade, as escolas de ensino profissional privadas faziam de tudo com o
apoio dos Conselhos Estaduais de Educação em parceria com os representantes dos
Conselhos profissionais que formulavam critérios ultrapassados que privilegiavam
e ainda privilegiam os interesses privados. Enquanto que as Escolas Técnicas do
SUS, em alguns Estados, encontram dificuldade em aprovar currículos que
dialogam com a sociedade. De certo, essa forma de agir dos conselheiros
estaduais de educação, seguem determinada visão e projeto de mundo hegemônico
em nossa sociedade.
Em
2004, o MEC coloca em discussão a Política Pública para a Educação Profissional,
tendo como base a redução das desigualdades sociais, a relação com o
desenvolvimento econômico, o direito a ser garantido e, por fim, o comprometimento
com uma escola pública de qualidade. O discurso do documento é coerente,
resgata algumas lutas dos educadores fazendo crítica ao ensino organizado por
competências e a mercantilização do ensino, assim como dá a EPT a dimensão que
melhor evidencia a inter-relação do sistema educativo com os outros sistemas
sociais. No entanto, a afirmação de que a EPT não é uma questão acadêmica é
política e estratégica mantém a dicotomia entre pensar e o fazer, deixando uma
abertura para que esta modalidade de ensino seja regulada pelas tendências de
mercado – sonho dos adeptos da teoria de competências e de outras teorias
utilitaristas da educação.
Os
pressupostos deste documento foram incorporados em parte pelo Programa Nacional
de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), criado pelo Governo Federal
em 2011, para ampliar a oferta de cursos técnicos em todo o território
nacional, considerando as pesquisas que apontavam para um apagão de mão de obra
em todos os setores da economia. Cabe aqui ressaltar algumas ações desta
proposta:
1.
Cadastramento das
Escolas e Cursos Técnicos regulares em um único sistema, o que, a priori,
serviria de consulta pública para todos aqueles que se interessassem em avaliar
a estrutura do curso e a infraestrutura das escolas ofertantes. Este
instrumento de transparência foi o primeiro passo para constituição da Rede
e-tec Brasil (Decreto nº 7.589, 26/10/2011) que agregou a Rede Federal de
Educação Profissional, as Unidades de ensino dos serviços nacionais de
aprendizagem e as instituições de educação profissional vinculadas aos sistemas
estaduais de ensino. Atualmente é esta rede, que vem definindo os perfis de
curso, a certificação por competências, o sistema de avaliação institucional,
entre outras deliberações que são acordadas por este colegiado dentro do
governo. Pelo decreto, as RETSUS foram
excluídas por não fazerem parte nem da Rede Federal e nem da Rede Estadual de
Ensino. Em consequência, a formação Técnica em saúde vem sendo pensada na
lógica do setor privado porque ofertam em larga escala, a maioria dos cursos do
Eixo Tecnológico Ambiente Saúde. Então que visão de SUS vem definindo a formação
de Recursos Humanos para o Setor Saúde? Que concepção pedagógica orientará o
sistema de ensino técnico: a emancipadora para formar o trabalhador de saúde
como ser político e produtivo, ou tecnicista que forma trabalhadores
cumpridores de ordens e fazedores de ações?
2.
Valorização da
Rede de Escolas Técnicas Federais com reforma e/ou construção de novas
unidades, investimentos tecnológicos massivos e formação docente fora e dentro
do país. As 350 Escolas Técnicas Federais foram apresentadas durante a campanha
presidencial como resultado positivo para o governo, porque esta rede com os
recursos do Pronatec conseguiu oferecer cursos de Formação Inicial Continuada,
Cursos Técnicos, Cursos superiores de tecnologia, licenciatura e programas de
pós graduação o que foi relevante para o desenvolvimento da EPT, pela qualidade
de ensino ofertado por estas escolas.
Se
o Ministério da Saúde, como todos os ministérios fizeram, assinasse o termo de demandante
da política (PRONATEC) e apresentasse sua rede de escolas, com certeza receberia
o mesmo investimento da Rede Federal de Ensino, bem como, contribuiria com as
discussões que deliberaram os caminhos para formação dos futuros trabalhadores
do setor saúde.
3.
Elaboração de
Catálogo de Cursos Técnicos e Cursos de Formação Continuada (FIC) para
uniformizar o perfil de formação reduzindo a variedade de interpretações dos
gestores educacionais sobre o que seria essencial para que uma pessoa fosse
preparada a desenvolver uma determinada profissão. O primeiro embate foi
acordar a carga horária mínima para os cursos FIC, oferecidos de 20 a 240
horas, o que nem sempre dava conta do desenvolvimento de habilidades exigidas
pela ocupação. Ao final, foi instituída carga horária mínima de 160h, com
possibilidade de ampliação de 50% desta carga horária, ou seja podia chegar a
240 horas. Lógico que esta negociação atendia a disponibilidade de recursos e
por outro lado mexeu com a estrutura das escolas que vendiam cursos para
empresas com carga horária inferior à instituída. É evidente que o mesmo curso
não poderia ser oferecido no Pronatec de uma forma e pelo markenting
institucional de outra.
Foram
organizados 12 Eixos Tecnológicos, dos quais interessam para o SUS o ET
Ambiente e Saúde, ET Segurança e ET Desenvolvimento Educacional e Social, isto
não quer dizer que o setor saúde não faça links com os outros eixos através da
vigilância em saúde e outros temas transversais, por isso, durante o processo
de discussão e composição destes eixos e da organização das ocupações/profissões
foi sentido a ausência do MS representado pelos técnicos das RETSUS. Se houve
algum tipo de representação, foi fora do campo das disputas institucionais, o
que geralmente pode resultar em encaminhamentos que reduzem o escopo do debate.
Nos ETs Ambiente e Saúde/Segurança são 41
Cursos de FIC e 29 Cursos Técnicos, os primeiros organizados com uma breve
descrição da ocupação, carga horária e escolaridade mínima; enquanto que os
cursos técnicos constam de descrição da profissão, possibilidades de temas,
possibilidade de atuação e infraestrutura recomendada. As duas estruturas foram
formatadas a partir de documentos do Sistema S e do grupo que discute
Certificação por Competência, o que contradiz o documento inicial que discute a
política de EPT e reforça a tendência de um ensino técnico voltado para a
execução de tarefas.
Como
os catálogos servem de orientação para as escolas ofertarem cursos técnicos na
área de saúde, nos preocupa a descrição e a forma de alguns cursos, como
exemplo Agente Comunitário de Saúde e o Curso de Aconselhador de dependência
química, tendo em vista as orientações do Ministério da Saúde através da
Estratégia da Saúde da Família e do Projeto Caminhos do Cuidado em Saúde Mental
(crak, álcool e outras drogas). Quais os princípios orientadores desta formação
em Escolas que não vivenciam as discussões de organização e qualificação do
SUS? Não só estas, mas todos os
currículos das profissões/ocupações ligadas ou correlacionadas ao sistema de
saúde precisam ser revistos e reorientados pelo setor no âmbito da educação.
4.
Para potencializar
as ações de profissionalização o governo impôs que o Sistema S investisse até
2016, de forma escalonada, 65% de sua receita financeira fruto dos subsídios,
em matriculas gratuitas, por isso foi lançado o Programa Gratuidade do SENAC.
5.
Por fim, a
integração de todos os Ministérios para gerenciar esta política na qualidade de
demandantes por conhecerem as necessidades de formação de suas pastas. Esta
interação gerou outro braço do programa, que é o Brasil Profissionalizado cujo
objetivo é a ampliação da oferta e o fortalecimento da Educação profissional
tecnológica integrada ao ensino médio nas redes estaduais, o que contribuiu
para inserção de jovens no mundo do trabalho. Outra iniciativa é a articulação
do PRONATEC com o Ministério de Desenvolvimento Social através da
profissionalização das pessoas assistidas pela bolsa família. Outros processos
estão em andamento, incluindo o do Ministério da Saúde.
NÓS CRÍTICOS DESTA POLITICA DE FORMAÇÃO
PROFISSIONAL (PRONATEC)
Além
dos entraves já comentados, ressalto que o PRONATEC deixou pra trás os
princípios e a essência dos pressupostos estabelecidos na proposta de Política
para a Educação Profissional e Tecnológica, porque, no afã por resultados, utilizou
meios que possibilitaram a quantidade, considerando que o números de formandos
nestes 04 anos foi um sucesso, mas negligenciou a busca pela formação para o
trabalho capaz de promover a mudança social através do diálogo, da parceria, da
participação e mobilização da sociedade. Na verdade, reforçou o poderio do
setor privado na gestão da Política de EPT. Com isto o mercado continua
soberano.
Nesta lógica, os nós críticos mais
importantes desta política são:
·
Aplicação maciça de
recursos públicos no setor privado, gerando a mercantilização do EPT via
repasses vultuosos por parte do MEC sem o controle e avaliação da qualidade do
ensino oferecido à população.
·
No campo da saúde,
estranhamento/distanciamento entre as concepções pedagógicas adotadas nas
experiências de formação do SUS com a formação por competências restritas ao
fazer adotadas por algumas escolas da Red-TEC. A intencionalidade dos
currículos construídos pela escola (prescrito) e a execução (realidade) induzem
uma formação que no discurso é emancipadora, mas na execução é utilitária a
serviço do mercado.
·
A oferta de Ensino à
distância (total ou parcial) para formação de trabalhadores que vão atuar no
setor saúde, os quais necessitam adquirir habilidades junto aos usuários do
sistema, serve para reduzir os custos das Escolas, mas oferecem segurança aos
usuários. Quem oferece? Como serão qualificados os Tutores? Os momentos de
dispersão serão realmente realizados e supervisionados por tutores com experiência
técnico-pedagógico? Que riscos esta
proposta pode trazer aos usuários do sistema?
·
A grande tendência
das Escolas em reduzirem carga horária do Ensino supervisionado nos campos de
prática, optando por visitas orientadas, o que não qualifica o trabalhador a
desenvolver as habilidades inerentes a profissão, principalmente no setor
saúde. Além disso, o alcance de metas quantitativas, superlotam as unidades de
saúde criando entraves no sistema com os profissionais de saúde e na qualidade
da formação.
·
A quantidade de
oferta de vagas oferecidas pelo Pronatec e a grande capilaridade dos sistemas
educacionais envolvidos acabam criando excedente de pessoas formadas em regiões
cujos postos de trabalho são parcos. O resultado é a desvalorização do trabalho
em saúde e a exploração destes trabalhadores, por falta da concretização de
Piso salarial e planos de Cargos e Carreira nos setores público e privado.
Concluo
as minhas reflexões dizendo que o maior desafio para inserção dos pressupostos
da Educação Popular na Formação Técnica em saúde são as disparidades das
propostas curriculares que ainda formam para um SUS centrado na doença e nas
ações hospitalares, em detrimento do SUS que cuida e promove saúde e qualidade
de vida. Além disto, o distanciamento dos intelectuais e dos técnicos do setor
saúde das discussões e deliberações da política de EPT (PRONATEC) que
atualmente forma milhares de pessoas, resulta na inserção no sistema de
profissionais que não entendem a complexidade do processo saúde-doença com as
relações que o indivíduo e a coletividade estabelecem com o mundo. Se não
houver uma intervenção destes atores, mais adiante, serão necessários ajustes
na formação destes trabalhadores que foram formados na visão hospitalocentrica
de prestação de serviços individuais, em detrimento da promoção da saúde de
forma universal, integral e equânime.
Diante
do resumido panorama traçado da EPT repasso o questionamento para os coletivos:
Como a EP pode ser inserida no processo de formação técnica em saúde?
Referencias
·
BRASIL. Proposta em
Discussão de Políticas Públicas para a Educação Profissional e Tecnológica.
Ministério da Educação, Brasília, abril. 2004.
·
CASSIOLATO, Maria
Martha e GARCIA, Ronaldo Coutinho.
PRONATEC: Múltiplos Arranjos e Ações para ampliar o acesso à Educação
Profissional. IPEA. Brasília. 2014.
·
CINTERFOR. De la certificación laboral a la
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OIT – Brasilia – São Paulo, s,d.ção on
·
FREIRE, Paulo. Pedagogia
da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 3ªed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1992
·
TEIXEIRA, Zuleide A.
Relatório dos trabalhos do grupo 01. “Educação profissional como política
pública”. Relatório Final. Brasília: MEC/SEMTEC/PROEP, 2003.
[1] Enfermeira aposentada
pelo Ministério da Saúde. Atualmente coordena o Programa de Atualização para
Técnicos Em Enfermagem (PROTENF) organizado pela Associação Brasileira de
Enfermagem/ Artmed/Panamericana Editora Ltda; é tutora do Projeto Caminhos do
Cuidado em Saúde Mental (crack,álcool e outras drogas). Membro da Comissão
Nacional de Educação Profissional Técnica da ABEn. Neste evento, representante
da Associação Brasileira de Enfermagem Seção Rio de Janeiro.
DESAFIOS, POSSIBILIDADES E DIFICULDADES DA EDUCAÇÃO POPULAR NA EAD – EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA: A EXPERIÊNCIA DO EAD NO EDPOPSUS
Vera Joana Bornstein
Seminário de Educação Popular na formação
profissional – João Pessoa, dezembro de 2014
Antecedentes
} A proposta
inicial do Ministério da Saúde para o curso de Qualificação em Educação Popular
em Saúde era de formar 120.000 Agentes Comunitários de Saúde e Agentes de Vigilância
em Saúde, num período de três anos com um momento presencial por estado e ênfase
na conexão virtual.
} Esta
proposta corresponde a uma tendência a pensar cursos de larga escala por
processos virtuais.
} Entre
22 e 23 de março de 2012 houve uma reunião em Aracaju, que contou com a
participação de participantes do movimento de educação popular com experiência
na formação e na atuação com ACS e AVS além de representante da EPSJV (Escola
Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio). As principais propostas foram:
o
O grupo considerou que o conteúdo do curso
tem cunho político e relacional o que pressupõe encontro de sujeitos. Educação
Popular parte da experiência do educando, o que exige uma aproximação às
diferentes realidades. O público do curso tem em grande parte dificuldades de
acesso ao ambiente virtual de aprendizagem.
o
O curso deveria prever um módulo inicial de
inclusão digital, tanto para participantes como para equipe;
o
O curso deveria ser realizado principalmente através
de encontros presenciais coletivos. Estes coletivos seriam compostos de pequenos
grupos (do mesmo serviço), que se encontrariam durante o horário de trabalho,
semanalmente.
Execução
do curso EdPopSus
} A
primeira parte do Curso de Qualificação em Educação Popular foi iniciada em
novembro de 2013 e finalizada em agosto de 2014, em 9 Unidades da Federação,
com um número aproximado de 20.000 alunos. O curso foi planejado para 53 horas,
das quais 32 horas de encontros presenciais, 11 horas de conexão virtual e 10
horas de atividade de campo. O curso foi ofertado em três momentos distintos.
} Pelas
dificuldades enfrentadas desde a inscrição no curso até o acesso às Comunidades
Virtuais, ficou confirmada a dificuldade do público do curso com este tipo de
tecnologia. A grande maioria dos ACS não tinha e-mail próprio.
} A utilização
das redes sociais, que é frequente entre este público, não indica habilidade em
relação a plataformas educacionais.
} Entre
os instrumentos de avaliação do curso estavam dois formulários online
preenchidos pelo corpo docente e pelos núcleos de coordenação Estadual que indicaram
que os momentos mais ricos do curso foram os momentos presenciais. As
percepções do corpo docente e núcleos Estaduais serão mencionadas a seguir.
Percepção do corpo docente em relação ao ambiente virtual
} O
corpo docente explicitou dificuldades sobre o acesso dos educandos à Comunidade
Virtual de Aprendizagem, que incluiu a exclusão digital dos alunos, dificuldade
de compreensão das ferramentas, falta de interação na Comunidade.
} Nas
2ª e 3ª ofertas, apenas 7,1% dos docentes considerou o acesso à CVA fácil, no
entanto a grande maioria (92,9%) considera que o acesso à CVA enriquece o
processo de aprendizagem dos educandos.
} As
respostas do corpo docente ao 1º Formulário de Avaliação indicam que 65% dos
participantes consideraram o Fórum de discussão na Sala de Mediadores da Comunidade
Virtual de Trabalho como importante para o seu aprendizado.
} De
acordo com as percepções do corpo docente na 1ª oferta, um dos elementos que
mais facilitou a aprendizagem dos educandos foi a vivência do método e dos princípios
da EP em sala de aula.
} A
respeito dos momentos presenciais, para 91% dos respondentes os momentos
presenciais foram importantes para o aprendizado dos educandos sendo que uma
grande parte destes considerou que esta foi a atividade mais importante do
curso
Análise
da CVA
} Instigadas
pela avaliação do corpo docente e núcleos Estaduais e ainda pelas dificuldades
explicitadas pelos educandos no acesso à CVA, a Equipe da Escola Politécnica de
Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) fez um acompanhamento do uso da CVA na 1ª e na
2ª oferta do curso a fim de analisar as relações pedagógicas.
} Os resultados
encontrados indicam que:
◦
O número de tópicos abertos foi muito menor
que o número de educandos o que reflete a dificuldade de acesso à CVA,
sobretudo ao considerarmos que havia grande repetição de pessoas que postaram
tópicos.
◦
A maioria dos tópicos (60.4%) não teve
nenhuma resposta, ou seja a interação foi nula.
◦
Alguns tópicos abertos (4,6%) lograram mais
de 10 interações. Estas participações possibilitaram a interação entre alunos, as
reflexões críticas, participação dos docentes e postagem de material
complementar como caricaturas e pensamentos;
Conclusões
} O
ambiente virtual, nesta experiência, não facilitou de forma geral o espaço
pedagógico coletivo e o diálogo entre participantes. Ainda assim, os Fóruns
interestaduais possibilitaram algumas trocas bastante ricas sobre processos e
condições de trabalho dos agentes, favorecendo a problematização de questões
importantes. Esta situação indica uma potencialidade.
} As
plataformas virtuais devem ser consideradas como
uma possibilidade e não como uma obrigatoriedade.
} A
tecnologia precisa estar adaptada ao público e não o público à tecnologia, mas
ainda assim, é necessário que a forma de trabalhar numa plataforma virtual seja
aprendida.
} A
riqueza dos momentos presenciais confirmou o potencial destes encontros em
processos educacionais em larga escala
POÉTICA A VÁRIAS MÃOS
Apresentação realizada por
Julio
Alberto Wong Un1
Em 12 de dezembro de 2014
Debate de tema transversal:
O que é inegociável?
Princípios fundamentais da Educação
Popular para a formação em saúde.
Para ver a apresentação clique no link:
1. UFF/RJ - GT EDPOPSAUDE ABRASCO
O QUE, COMO E PARA QUE CONHECER?
REFLETINDO SOBRE PROBLEMATIZAÇÃO NA PERSPECTIVA DA
EDUCAÇÃO POPULAR E DA SAÚDE
11/12/2014 - Debate de tema
transversal
Aprendizados, desafios e enfrentamentos da Educação Popular em Saúde com
outras perspectivas educativas que valorizam as metodologias ativas e
problematizadoras
Estava conversando
com Valla[2],
sobre como traduzir a Educação Popular em metodologias de ensino em sala de
aula. Ele me colocou a seguinte questão: se um sindicato está indo a falência
por problemas financeiros de controle de contabilidade, o que seria fazer Educação Popular? Não poderia ser dar um
curso de contabilidade?
Traduzi o
que Valla estava
perguntando, quase como um conselho: não
há que se fetichizar metodologias educacionais. Isso seria fazer uma
absolutização, apenas uma teria, em absoluto, a perspectiva ótima, de fazer
acontecer a Educação Popular. Seria alienar todas as outras, ou propor que
todas as outras são alienadas ou alienantes, o que é um postura alienante, que
me tira a crítica, pois parto de uma absolutização de que apenas a minha não
aliena, o que é uma conclusão alienada, não?
Penso que ao se falar
em Educação Popular temos alguns bons critérios, óculos,
para olhar e, como diz o titulo da roda, aprender com, enfrentar perspectivas
educativas. Eu sintetizaria a perspectiva da Educação Popular, quase como um
princípio traduzido em um questionamento: a que projeto de mundo servem? É com a resposta a esta pergunta que
escolhemos os caminhos metodológicos. Fazendo-a e refazendo-a, permanentemente,
podemos retraçar caminhos. De toda abordagem diferente, de toda teoria sobre
ensino aprendizagem derivam-se modos de ensinar. Todas têm uma visão de mundo,
sociedade, ser humano; algumas têm, explicitamente, um projeto de mundo.
Falar do que qualifica uma
perspectiva como ativa e problematizadora em Educação Popular requer pensarmos
nos constructos políticos-teóricos que formulamos em Educação Popular para
pensar PARA QUE, PARA QUEM, CONTRA QUE e CONTRA QUEM (inspiro-me nas perguntas
formuladas por Paulo Freire em Pedagogia da Esperança[3]).
Assim vejo a educação popular, Paulo Freire elaborou uma teoria do conhecimento
que nos permite, por sua vez, elaborar
processos tendo à nossa frente essas quatro perguntas.
Indicar que se problematiza
situações reais, que o aluno é protagonista ou ativo na construção do
conhecimento, me agrada, mas ainda é pouco para responder essas perguntas.
Problematiza para que? Vejam, eu não pergunto por que, o porque está
respondido, pelo pouco que conheço das metodologias ativas.
Quando Paulo Freire decidiu usar a
palavra-mundo TI-JO-LO na alfabetização de adultos em Angicos, não foi uma
escolha apenas por uma palavra mais conhecida daqueles estudantes, do que por
exemplo, a expressão “vovô-viu-a-uva”[4].
A escolha se deu por ser palavra que continha possibilidades de gerar outros
debates, outras discussões e reflexões políticas. Leitura de mundo precede a
leitura da palavra, diz ele, ou no minimo, vêm juntas.
É certo que ao falarmos de construção
dialógica de conhecimento na Educação Popular para transformação, problematizar
é parte do processo de ampliação do conhecimento. Não se amplia conhecimento se
não se tem consciência da incompletude, são
perguntas feitas sobre a realidade que me demandam a construção de novos
conhecimento (Mas só isso basta?). Porém o inverso nem sempre é dado: ao
problematizarmos é certo que estamos construindo conhecimento de forma dialogada para a transformação
social, para a construção de uma vida de qualidade para todos? Acredito que
este é um ponto que poderá nos fazer olhar as demais perspectivas educativas e
nos perguntar sobe enfrentamentos e/ou trabalhos conjuntos.
Há várias usos da palavra perspectiva, mas em Educação, ela indicaria um posicionamento, uma
escolha de um contexto, uma referência de onde se parte para a significação de
uma experiência. Freireanamente falando,
a perspectiva parte e contém uma visão de mundo ao mesmo tempo que a constrói e
reconstroi. E, não apenas isso, contém um projeto de mundo. Pois afirmar uma
perspectiva, em Educação Popular, não é meramente uma cognição, uma percepção,
mas é também e sempre ação (crítica ou ingênua).
Sobre esses projetos de mundo
da Educação Popular, penso que teremos mais tempo para conversar durante todo o
Seminário. Mas algumas coisas é preciso localizar, para podermos falar em aprendizados, desafios e enfrentamentos em diferentes
perspectivas, inclusive questionando se são diferentes. Se sim, no que se constituiu
essas diferenças?
Educação popular é
situada a partir do lugar das vítimas. Sua praxis
intencionaliza a humanização, sendo um dos meios primordiais para isso, a
descolonialidade do poder e do saber. Não dicotomiza saber
científico (acadêmico, erudito) e popular. Dicotomizar seria algo como entender
que poderíamos separar um do outro, ou seja, que haveria conhecimento
científico, acadêmico “puro”, ou popular “puro”. Assim como Paulo Freire diz do
“saber-de-experiência-feito[5]”,
digo do “saber de academia feito” e afirmo que em mim, que percorri minha
formação profissional na academia, circulam os dois. Alfredo Bosi fala que as
culturas se imbricam, a popular, a erudita e de massa (ou indústria cultural)[6].
Educação popular não dicotomiza esses saberes, especialmente, não os
hierarquiza.
Sobre
humanização, o que quero dizer ao usar essa expressão? Gostaria de citar um
trecho de Dussel e já recomendar o livro “20 teses de política” de onde extrai
este trecho[7] (Dussel
apresenta o livro dizendo que o escreveu para os jovens, para que voltem a se
interessar pela política): “... o querer-viver dos seres humanos em
comunidade denomina-se vontade. A vontade-de-vida é tendência
originária de todos os seres humanos ...” (p.25).
Produção, reprodução e
aumento qualitativo da vida dos cidadãos é conteúdo
de toda ação
política e portanto de toda ação docente (cruzam-se os campos ecológico,
econômico, cultural etc). É condição absoluta para
o resto[8]. Este é nosso ponto de partida (ou de
chegada?) para avaliar metodologias e perspectivas educativas.
Metodologia ativa é aquela que
propicia ao estudante ser protagonista na construção desse conhecimento-ação. Mas
não é o protagonismo individualista da seguinte conversa:
-“faço por que gosto.”
-“por que?”
-“por que sim!”
(como está no comercial da
cerveja).
O protagonismo do estudante na
metodologia ativa, na perspectiva da Educação Popular, é um protagonismo
obedencial[9].
Obediêncial pois está a serviço. O
processo pedagógico da Educação Popular é comunitário, como diz Dussel[10],
e em comunhão, como diz Freire[11].
Portanto é ético e político. Voltarei a isso.
Alguns aspectos que me parecem
vitais no processo pedagógico na EP, e com o vejo as relações com as
metodologias problematizadoras e ativas.
O “face a face”[12]:
promover atividades vivências, experiências, que institucionalmente podem ser
denominadas de práticas. Mas não é só isso.
Reconhecer a incompletude de
seu conhecimento, que não sabe tudo. Mas não é só isso. As pessoas que chegam
ao serviço de saúde
relatam problemas como a violência
no trânsito, a violência
doméstica, insônia, desemprego, sofrimentos difusos, que o profissional
de saúde não consegue equacionar dentro dos protocolos de atenção, não consegue
entender pelos limites de sua formação. A incompletude da formação profissional
é técnica, formação que não abarca a saúde nessas dimensões todas. Expressões
como ‘não está
dentro da minha governabilidade’, resolvem a insegurança diante do que
‘não conheço, não aprendi, não sei como cuidar’.
Nos anos
2000, aprendi a palavra “governabilidade” e escutei-a
várias vezes dos profissionais de Saúde, como limite para sua ação (“não está dentro da
minha governabilidade”). Na verdade, o que não está dentro da governabilidade
era a formação desses profissionais, ou melhor, aquela parte da formação que é
o conteúdo que o professor seleciona e lhe traz para sala de aula, e que não
consegue abarcar todo o conhecimento necessário para sua atuação. O resto todo (da formação, atuação,
etc) está dentro da sua governabilidade, ou não estamos falando de educação
popular.
Essa conclusão da
“não-governabilidade” parecia imobilizar os profissionais, ao mesmo tempo em
que causava um certo conforto.
Mas como sair
dessa amarra? Ao
saber que não sei tudo, e querendo sair das amarras da “gonvernabilidade” posso
procurar superar a incompletude apenas com mais
conhecimento técnico. Essa postura coloca o conhecimento popular como
“mito” - mito sobre aleitamento materno, mito sobre curas populares, mito
sobre alimentação - e não como conhecimento.
A
Educação Popular vem denunciando a arrogância de um conhecimento, o científico,
em ser puro conhecimento, como já mencionei anteriormente. E que as pessoas
formadas na academia, além de serem detentoras desse conhecimento, recorreriam
apenas a ele para solucionar problemas, ou tomar decisões, ou construir outros
conhecimentos, etc. Porém,
não são poucos
os exemplos em que pessoas formadas pela academia utilizam-se de senso comum
para avaliar aquilo que não conhecem, ao invés de admitirem, reconhecerem, como
é vital para o desenvolvimento da ciência, as lacunas de seu próprio
conhecimento científico. A Educação
Popular não hierarquiza conhecimentos, mas pergunta pela criticidade do
conhecimento, seja ele tido como erudito seja tido como popular. Mas ainda não é só isso.
Não é possível
conhecer o mundo sem cruzar, nessa caminhada, consigo próprio. Consciência
é um adentramento em si mesmo e uma volta pelo mundo, diz Fiori[13].
Problematizar, na
Educação Popular, não é apenas perguntar, estudar, ampliar o conhecimento, mesmo
que crítico, acerca da realidade do outro; e ficar no “confortável” lugar do
“mesmo” (o problema é do outro, o problema é o outro, o problema é no outro...
Eu não estou sendo afetado, etc). É também me ver como Outro[14].
Mas não é só isso, ainda.
Os estudos.
Referências político-teóricas nos ajudarão a ampliar a compreensão de mundo.
Metodologias ativas pedem que os estudantes façam pesquisas bibliográficas,
procurem construir seu conhecimento. Mas onde? Quais são as nossas referências?
O conhecimento secular ou o conhecimento milenar? O conhecimento acadêmico ou o
popular? Onde buscar conhecimento para poder ampliar o meu acerca daquela
realidade? Esta pode ser uma diferença entre perspectivas, se buscamos apenas
conhecimento em uma certa racionalidade acadêmica ou buscamos também
conhecimentos nas experiências e reflexões de povos originários, nas culturas
populares.
Vejam esta afirmação do filósofo
aymara Huanacuni:
“[...] quando falamos de comunidade, não falamos só de humanos.
Comunidade é tudo: animais, plantas, pedras” e para mudar o sentido de um rio o
indígena vai dizer: “não, calma, espera, vamos pedir permissão para os nossos
ancestrais e vejamos se é bom”, enquanto o capitalista diz: “Claro que é bom,
aqui vamos produzir”. “Ele não vê importância no espiritual, não o sente. Por
isso ainda não está entendendo.[15]”
Promoção da saúde numa
comunidade onde comunidade é tudo, o que seria? Qual a radicalidade dessa
proposta aymara para se pensar a saúde? No que ela dialoga com a proposta da
OMS? No que ela pode nos ajudar a construir uma vida de qualidade?
Ser ativo na construção do
conhecimento não basta, há que conhecer como conhecer, e no caso da EP, conhecer
passa, necessariamente, pelo conhecimento popular. Não como folclore, mas
como cultura e como potentia (Dussel
diferencia potestas e potentia. Potentia é o ponto de
partida, mas ainda sem existencia real, objetiva, empírica. É ao mesmo tempo
força e possibilidade futura. Se não for atualizado por meio da ação política,
e institucionalizado por meio das mediações políticas, ficará como
possibilidade. A necessária institucionalização do poder da comunidade, do
povo, constitui potestas[16]) .
Quase nada há na bibliografia até onde eu conheça, sequer
na história dos acontecimentos da saúde, que busque o conhecimento desses
povos. Por exemplo, no tema do Saneamento. Dou aula na licenciatura em
Enfermagem e as estudantes tinham que preparar uma aula sobre Saneamento para
os estudantes de um Curso Técnico de Enfermagem. Pudemos problematizar junto as
estudantes o que é civilização, o que é barbárie,
contrapondo modos de tratar os dejetos e a água. Um dos modos era o de nossos
povos originários da América Latina, bem como de povos da África (no caso que
estudamos, Egito). Outros eram os modos da corte imperial portuguesa, quando
aqui chegou. Comparávamos os dois modos, sendo que nos livros sobre Saneamento,
quando mencionava o Brasil, o recorte histórico era a chegada dessa corte, como
se não houvesse povos aqui antes disso, ou mesmo “saneamento”. Vizualizamos as
figuras com tecnologia de povos egípcios, com seus dutos de transporte de água,
separados, quase que isolados, e estes nos lembravam, e muito, os dutos dos
arcos da Lapa, na cidade do Rio de Janeiro. Onde começava a história? Por que a
história do saneamento, que encontramos nos livros da área de Saúde, mostra os
arcos da Lapa, mas não mostra os dos egípcios? E assim, fomos problematizando o
processo “civilizatório” e a
colonialidade do saber.
Ainda sobre conhecimento popular, além
da visibilidade histórica desses conhecimentos e tecnologias populares, onde
mais poderíamos buscar construir a criticidade do “conhecer” na perspectiva da
Educação Popular. Posso dar um outro exemplo. Quando vou fazer o reconhecimento
do território na Saúde da Família, há um mapeamento das práticas populares de
saúde? Entende-se a equipe de saúde de modo ampliado, articulado com esses
terapeutas? Os estudos sobre intersetorialidade no SUS dizem o que é setor? Posso
pensar a intersetorialidade como integração dos serviços de saúde com outros
setores ou órgãos públicos, privados. E não enxergar os espaços e processos
populares de promoção da vida de qualidade, como um setor. Assim sendo, a
intersetorialidade não propõe ou sabe fazer intersetorialidade. Aqui Educação Popular pode fazer a diferença
na discussão da intersetorialidade.
Nos debates nos grupos poderemos falar
de possibilidades teóricas e impossibilidades empíricas. Ou de situações
limites e de inéditos viáveis, mas queria falar de uma situação limite e de um
inédito viável, pelo menos, para finalizar e propor outras questões para
seguirmos no debate.
Sobre a situação
limite.
“O que em ética é válido é
subsumido em política como legítimo”, diz Dussel no livro “20 teses
de política” (p.67). Para que essas mediações práticas
sejam legítimas, faz-se necessário, idealmente, que todos os estudantes e
professores possam participar de alguma maneira simetricamente, com razões[17],
na formação de consensos, nos acordos que são realizados em sala
de aula e fora dela. Até que ponto os estudantes participam de maneira
simétrica deste e de outros espaços decisórios na
instituição escolar? Há contradições institucionais para que a Educação Popular
aconteça em sala de aula. A cultura da
sala de aula é permeada pela cultura fora da sala de aula. Educação Popular na
universidade passa pela democratização dos espaços e processos decisórios, seja
democracia representativa (com real representação, sem fetichização do poder, com comunicação e de
forma obedencial, como já dito anteriormente), seja participativa.
Sobre o inédito viável.
Alfonso Torres (2012) nos
indica que ao mesmo tempo que não precisamos buscar paradigmas
emancipatórios
fora do campo político pedagógico da Educação Popular, o emancipatório não é patrimônio exclusivo da Educação
Popular[18].
A Educação Popular, como perspectiva crítica
e pedagógica, tem se enriquecido com outras perspectivas, como a de gênero (por exemplo, os debates
sobre feminismo dialógico), a
cidadania crítica, multiculturalismo e diversidade cultural, educação das
relações étnico-raciais, economia solidária, teatro do oprimido, comunicação
popular, para falar de alguns.
Assim, há caminhadas diversas
com caminhantes a se juntar. No processo histórico de suas lutas, os povos
latino americanos vêm construindo o inédito viável da unidade na diversidade,
mostrando o que Paulo Freire (1992) chamava à atenção: a única minoria é a
dominante[19].
Aprendamos com estes povos.
[1] Professora na Universidade
Federal de São Carlos – UFSCar (SP). Coordenação do Projeto Mapeamento e
Catalogação de Práticas de Educação Popular e Saúde – MAPEPS, nessa
Universidade. Professora titular em Educação
Popular e Saúde: processos educativos em práticas sociais. Membro da Rede e do GT ABRASCO de Educação Popular e
Saúde. No momento deste evento, representante dessa Rede no Comitê Nacional
de Educação Popular em Saúde - CNEPS, do Ministério da Saúde e coordenadora do GT de Educação Popular da Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação - ANPEd.
[2] Victor
Vicente Valla, educador popular falecido em 7 de setembro de 2009. Pesquisador
da ENSP (Rio de Janeiro), Valla é referência para a Educação Popular por seu
trabalho como pesquisador, pelo seu engajamento político e por seus escritos (vários
artigos de Valla estão disponíveis para acesso via internet). A conversa referida aconteceu durante o I
Seminário Nacional sobre Educação Popular e Saúde, ocorrido em 2004 em
Brasília.
[3] FREIRE, Paulo. Pedagogia
da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 3ªed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1992.
[4] LYRA, Carlos. As quarenta
horas de angicos: uma experiência pioneira de educação. São Paulo: Cortez,
1996.
[5] FREIRE,
Paulo. Pedagogia do oprimido. 17aed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1987
[6] BOSI, Alfredo. Cultura brasileira, culturas
brasileiras. In BOSI, Alfredo. Dialética
da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p.308-345.
[7] Enrique Dussel é uruguaio, radicado no México. Talvez um dos mais
importantes filósofos da libertação ainda vivo.
A maioria de sua obra está disponível na internet no seu sitio: http://enriquedussel.com/obras.html A citação que faço foi retirada de um livro
dele, também disponível na internet: DUSSEL, Enrique. 20 teses de política. 1ª ed. Buenos
Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales – CLACSO; São Paulo:
Expressão popular, 2007.
[8] DUSSEL,
Enrique. 20 teses de política. 1ª
ed. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales – CLACSO; São
Paulo: Expressão popular, 2007.
[9] Dussel no livro “20 teses de política”, diz que Obediência vem do
latim, ob significa ter algo ou
alguém “diante”, audire: ouvir, escutar, restar atenção. “Ob-ediência” contém o
ato de “saber escutar ao outro” (p. 39). Resumidamente o poder obedencial seria
quando a primeira e última
referência do “meu” poder é o poder da comunidade política. Ao referir-se a
representação democrática, Dussel diz: “O
poder obediencial seria , assim, o
exercício delegado do poder de toda autoridade que cumpre uma pretensão política
de justiça; de outra maneira, do político reto que pode aspirar o exercício do
poder por ter a posição subjetiva necessária para lutar em favor da felicidade
empiricamente possível de uma comunidade política, de um povo” (p.40).
[10] DUSSEL, Enrique. Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão. 3ª ed –
Petrópolis, RJ:Vozes, 2007.
[12] O face-a-face, em Dussel, seria onde se instaura a alteridade (o
encontro com o Outro, que me interpela) nas relações humanas. Por exemplo, na
relação professor-aluno, profissional de saúde-usuário, etc. DUSSEL,
Enrique. A pedagógica latino-americana
(a Antropológica II). In: _________. Para
uma ética da libertação latino americana III: erótica e pedagógica.
São Paulo: Loyola; Piracicaba: UNIMEP, s/d, p.153-281.
[13] Ernani Maria Fiori, brasileiro,
é filósofo da libertação. Talvez muitos o conheçam pelo prefácio do livro
Pedagogia do Oprimido intitulado “Aprender a dizer a sua palavra”. Mas ele tem
uma vasta obra, constituída especialmente por suas aulas e conferências,
recentemente reeditadas. Uma delas é
esta a que me refiro, que foi publicada: FIORI, Ernani Maria (1986) Conscientização e educação. Educação
e Realidade. Porto Alegre: UFRGS. 11(1), p.3-10, jan/jun.
1986.
[14]
Não haverá tempo de desenvolver esta discussão sobre Outro e sobre nos encontrarmos como Outro na Exterioridade do Sistema. Sugiro
leitura de Dussel sobre Totalidade e Exterioridade no livro: DUSSEL, Enrique. Ética da
libertação: na idade da globalização e da exclusão. 3ª ed – Petrópolis, RJ:
Vozes, 2007 ou este capítulo do livro
de nosso Grupo de Pesquisa da UFSCar: ARAUJO-OLIVERA, Sonia
Stella. Exterioridade: o Outro como critério. In: OLIVEIRA, Maria Waldenez; SOUSA, Fabiana
Rodrigues. (Org.). Processos educativos
em práticas sociais: pesquisas em educação. 1ed. São Carlos: EDUFSCar,
2014, v. 1, p. 47-112.
[15] BRASIL DE FATO. “Nosso modelo não
é comunista, mas comunitário", afirma aymara da Bolívia. Edição de
13/07/2009. Disponível em: http://www.brasildefato.com.br/node/3275.Acesso em: 15/10/2012. p.1.
[16] DUSSEL,
Enrique. 20 teses de política. 1ª
ed. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales – CLACSO; São
Paulo: Expressão popular, 2007.
[18] TORRES, Alfonso. El potencial emancipatorio de la
Educación Popular como práctica política e pedagógica. La piragua. Lima/Peru. n..37, p.59-76, 2012.
[19] FREIRE, Paulo. Pedagogia da
esperança: um reencontro com a
pedagogia do oprimido. 3ªed.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992
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